quinta-feira, 21 de julho de 2011

O exemplo é a principal lição

Maria José Nogueira Pinto...

«O Senhor é meu Pastor, nada me falta» (Sl 23, 1). Não me sai da memória o verso do Salmo que Maria José Nogueira Pinto escolheu para encerrar um belíssimo texto que escreveu pouco antes de nos deixar. Nestes momentos, há muito poucas palavras a dizer, fica apenas o exemplo.


Recordo, por isso, a mulher de ideias e de causas, de convicções e generosidade, que conheci desde quando ambos tínhamos dezassete anos. Sempre lhe encontrei uma especial atenção aos outros e à justiça, que, com o tempo, se foi acentuando – com abertura e afetuosidade. E a verdade é que se foram tornando evidentes significativas convergências quanto à necessidade de renovar as políticas sociais, de recusar a pura lógica do mercado ou a economia de casino e de apontar para a diferenciação positiva, em nome da dignidade.

Há muito pouco tempo (parece ontem, porque a doença foi rápida e fulminante), debatemos longamente a última encíclica do Papa Bento XVI «Caritas in Veritate» e voltámos a convergir, naturalmente, na recusa de uma lógica mercantilista. Por isso, Maria José tomou em mãos na fundação criada por Maria de Lourdes Pintasilgo, a missão exigente de fazer da justiça um ato permanente amoroso e emancipador. Daí a importância que dava a «cuidar o futuro», às «redes de proximidade» e aos «corpos intermédios», em termos modernos para responder à crise do Estado-providência, pela ação responsável do Estado e da Sociedade, com pessoas e comunidades concretas, no sentido da cidadania ativa ou de uma Sociedade-providência.

O seu percurso profissional fez-se assim de atenção e de causas: o serviço público e a justiça na Maternidade Alfredo da Costa e na Misericórdia de Lisboa; o bem comum e a criatividade na cultura, no cinema; e a magistratura cívica na Câmara Municipal de Lisboa, na Assembleia da República…

Quando ouvi a leitura das bem-aventuranças ou quando o Padre José Tolentino Mendonça recordou a serenidade com que Maria José (quase sem o deixar falar) lhe disse há pouco que «Deus ama quer os vivos quer os mortos», percebi que a experiência da fé só pode ser vivida, por cada pessoa de forma irrepetível, como sinal da graça de Deus, esse dom fantástico que permite ligar a razão e a esperança.

Encontrámo-nos, ao longo de 42 anos, em mil circunstâncias. Estou a ouvi-la chamar-me, com a sua voz inconfundível, a perguntar sobre as coisas mais diversas (e sabia muito bem ouvir). Na Rádio Renascença, no final dos anos noventa, encontrávamo-nos todas as semanas na «Prova dos Quatro», a debater o País e o mundo, com Maria João Avillez e João Amaral. Entre mim e ela eram mais as convergências que as divergências, por causa dos valores e das políticas sociais. Outras vezes, em sua casa ou em A-dos-Negros, até desoras, com o Jaime e a família, discutíamos tudo acaloradamente – a política, o serviço público, os políticos, as ideias.

Uma vez, a Maria José fez entrar nessas nossas conversas (para gáudio de todos) Nelida Piñon, personalidade fascinante de horizontes abertos e inteligência fulgurante. Foi um deslumbramento ouvi-la falar sobre a literatura e a vida. Para a Maria José não fazia sentido falar sem paixão sobre as coisas do mundo. As diferenças vinham naturalmente à tona, mas o essencial era a procura da dignidade e do bem comum. Os seus argumentos faziam sentido, eram convincentes, claros e inteligentes, e como fazem os mais sábios e argutos, era sempre capaz de se colocar no lugar do outro, enquanto antagonista de ideias.

Essa qualidade extraordinária permitiu-lhe ligar o sentido prático do serviço e a solidez dos argumentos e dos projetos. Como S. Paulo, combateu o bom combate. Sentimo-lo intensamente. O exemplo é a principal lição. E o tempo foi cimentando a nossa amizade como uma relação de confiança e admiração.

Guilherme d’Oliveira Martins
Voz da Verdade, 17 Jul. 2011

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