terça-feira, 5 de julho de 2011

As famílias constroem-se à mesa

Terça-feira, 21 de Junho de 2011
Público, Entrevista Claude Kaufman

O sociólogo francês Jean-Claude Kaufman, investigador no Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris, dedicou toda a sua vida a estudar as relações entre as pessoas através das tarefas domésticas, do lavar a roupa ao passar a ferro. Há quem lhe chame o sociólogo dos detalhes. Esteve em Portugal, a convite do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, para falar de comida e explicar porque é que é à mesa que se constrõem as famílias, tema do seu livro, não traduzido em português, Casseroles, amour et crises (que poderá traduzir-se por Tachos, amor e crises). A sua última paixão são as bolsas das mulheres e a forma como o seu interminável conteúdo revela a vida das suas proprietárias, mas essa era outra conversa.

Porquê este seu fascínio por detalhes?

Não há coisas pequenas na vida. Se escavarmos em profundidade conseguimos explicar toda uma sociedade por gestos tão simples que nem nos passam pela cabeça. Por exemplo, em casa quando se acorda, ninguém pensa "onde está a minha caneca do pequeno-almoço?", só esticamos a mão, mas cada objecto tem um lugar que não é igual em cada família e tudo isto é uma cultura profunda. A família é fabricada com as mãos e não podia viver sem toda esta organização: a limpeza, a lavagem das roupas. A cozinha é a parte ainda mais rica porque é ali que se prepara um momento que vai ser muito importante na vida familiar, que nem sempre corre bem, mas que é muito importante.

"Diz-me como comes em casa e digo-te como vai a tua família?" Esta frase é uma boa forma de avaliar a saúde da família?

As famílias de hoje não são simples, são cheias de contradições. As refeições contam-nos histórias. Há conflitos com os miúdos e, às vezes, liga-se a televisão para aliviar a tensão, para evitar o face-a-face, funciona como um convidado suplementar; ou, quando os filhos já mais velhos, saem de casa, há um regresso ao casal que não é simples, é preciso alimentar a convivência a dois e a televisão pode voltar porque anula a angústia. O silêncio assinala que não temos grande coisa a dizer.

Tem-se medo do silêncio à mesa?

Dantes, aceitava-se o silêncio. Hoje, quando dura muito tempo, mete muito medo: sinaliza que não há nada a dizer neste momento de vida familiar. Em França, uma em cada duas refeições é passada com a televisão. Mas as pessoas que não vêem televisão são muito rápidas a julgar a televisão como má. Em certas famílias, o difícil é não a ter, e, a um primeiro nível, não é mau haver televisão: ela pode alimentar a conversa, discute-se um concurso, um membro da família apoia um concorrente, outro tem outro, e cada um tem a sua justificação e vão-se conhecendo os valores, uns dos outros, por esta via. Mas é verdade que a televisão tem uma lógica devoradora, ela tenta engolir tudo e há sinais de quando se passou a linha vermelha: quando o volume é mais alto e substitui a conversa ou quando as cadeiras abandonam o face-a-face e se viram para a televisão.


Por que escolheu estudar as refeições?

À mesa, vemos como a sociedade mudou. Passámos de uma sociedade organizada, com regras, com uma verdade e uma moral únicas, em que cada um tinha o seu lugar - toda a gente vinha para a mesa a mesmo tempo, os pratos eram repetidos a dias fixos, ninguém questionava se estava bom ou não.

A grande mudança da sociedade começa a partir do início dos anos de 1960 e continua nos de 1970, o indivíduo passa a estar no centro da sua vida, já não há uma verdade única, cada um escolhe a sua e tenta fazer as melhores escolhas em todos os domínios. Há cada vez mais informação nos media e em cada momento podemos fazer escolhas diferentes: "Devo comer isto? Porquê?" Há escolhas em cada instante. A pessoa que cozinha tem uma enorme responsabilidade.

Define a tarefa de cozinhar como penosa por causa dessa infinita possibilidade de escolha?

As outras tarefas domésticas são um pouco invisíveis. Ninguém comenta que alguém limpou o chão com a esfregona, ninguém nota; a cozinha é diferente porque toda a gente vai discutir e, para certas mulheres, cozinhar é uma actividade sofrida, porque sente que tem muitas implicações, por exemplo, para a saúde. "Que alimentos devo escolher?" Há cada vez mais questões em torno dos alimentos e poucas respostas, porque a ciência é contraditória: um professor que diz que o alimento x é bom e outro diz não. É preciso decidir.

É há outras questões. Cada membro da família tem os seus gostos. Escolher um alimento é agradar a um, em vez de outro. Às vezes, a mulher não tem ideias e pergunta: "O que é querem comer hoje à noite?". É uma questão amorosa. O marido ou os filhos respondem: "Faz o que tu quiseres". É um momento de solidão, respondem aquilo para não a chatear, mas é mentira, depois à mesa dizem "Isto outra vez, já tínhamos comido isto há dois dias". E o mais duro é que a pessoa prepara as refeições sem que os outros percebam que é muito complicado.

Como é que se notam as mudanças sociais à mesa?

Dantes, a mulher gritava "todos para a mesa" e toda a gente descia e sentavam-se todos à volta da mesa. Hoje, na família, cada um tem a sua vida, incluindo os adolescentes, que têm as suas actividades e ritmos e, por vezes, há refeições em que alguns não estão, comem fora, cada um vai comer à sua hora o pequeno-almoço; há cada vez mais alimentos individuais. O frigorífico na casa tem um papel cada vez mais importante. Fiz um livro em que fotografava vistas aéreas do frigorífico com o desenvolvimento das refeições e percebe-se que é tudo muito feito em movimento. Há várias sequências: primeiro é lançado o grito de chamada, que significa que é hora do momento familiar, mas nem toda a gente aparece, cada um está nas suas actividades, um ao computador - entre os retardatários, estão os adolescentes e crianças. O grito é relançado de forma menos amorosa e, por fim, toda a gente está à volta da mesa, à volta do prato principal... À sobremesa, cada um levanta-se e vai buscá-la ao frigorífico e vai comê-la na mesa ou um pouco afastado. É isto a família de hoje.

É durante esta movimentação que se constroem laços de família?

A pessoa que prepara a refeição sonha com momentos mais familiares, tenta desenvolvê-los e pode haver resistência dos mais jovens. Quer um momento em que se discuta. "Como foi hoje a escola?", pergunta-se à criança e a criança não gosta, porque a seguir vai haver ralhetes. Às vezes, tenta-se discutir coisas demasiado sérias à mesa. É muito importante a conversa de chacha, o rir, o falar de comida - é isso que constrói a família, mesmo que não seja perfeito, mesmo quando há pequenos conflitos. Tudo são momentos essenciais de construção da vida familiar.

Fala das mudanças na família à mesa mas não de forma moralista. Não é o chavão da crise de valores e da família...

É toda a estrutura social que mudou. Adquirimos algo de novo, a liberdade individual, e há um preço a pagar. É uma sociedade mentalmente cansativa, porque é preciso escolhas sem cessar em todos os domínios; o segundo preço a pagar é a dificuldade em estabilizar o grupo, desde logo o próprio casal, que se torna muito frágil. Na mesa, às vezes, cada um está com os seus pensamentos, por exemplo, há o jovem que se quer levantar. Noutras alturas, sente-se que são momentos em que se faz família. Quando se está junto, é mais forte do que dantes, as trocas são mais personalizadas, a comunicação é mais íntima, e por isso é mais difícil.

Existe uma história das refeições? Quando é que as famílias começaram a comer à mesa?

É uma longa história, podia dar outro livro. A mesa com pessoas à volta vem dos séculos XVIII e XIX, na burguesia. Nesta altura, publicam-se os primeiros manuais das boas maneiras, é o início da modernidade. Alguns pensadores, preocupados com as mudanças sociais, vêm dizer que é preciso restaurar a ordem da família, para que a sociedade se estabilize. Vem desta época uma disciplina dos corpos à mesa, o estar-se muito direito à mesa, é daí que vem o "põe-te direito", o não pôr os cotovelos na mesa; falava-se pouco, não se podia interromper o outro, não se podia falar de emoções; as crianças não falavam ou então pediam autorização.

O que é que mantivemos dessa ordem?

Guardámos esta cenografia, mas é o contrário que se passa: já não estamos direitos, dá-se primazia ao bem-estar, ao conforto dos corpos. Toda a gente fala ao mesmo tempo, às vezes com a boca cheia, e as crianças estão no centro da conversa, mas não abandonámos tudo, senão não havia refeições. Cada família guarda algo deste ritual e junta-lhe algo de seu. Um exemplo no meu livro é o de uma família muito burguesa, de um bairro chique de Paris, que domingo ao almoço tem em casa uma refeição McDonald"s, mas com maneiras, pode-se comer com as mãos mas as crianças pedem autorização para se servir.

Ao mesmo tempo, fala de um novo interesse na cozinha mais associado ao lazer...

Constata-se, em todo o mundo, que há duas tendências contrárias: a individualização das práticas e o desejo do contrário, de ter momentos de grupo. E aqui vemos a paixão pela gastronomia a desenvolver-se em todo o lado. E aqui os homens estão muito interessados. A palavra lazer não chega para descrever esta questão, é melhor falar de momentos de paixão, momentos em que se realizam obras de arte, como na pintura, mas são efémeras, desaparecem quando comemos. Mas a segunda obra-prima é a criação do momento de convívio, de satisfação. De uma certa forma, é mágico.

Por que é que diz que os homens estão muito interessados neste tipo de cozinha?

As mulheres cozinharam durante séculos sem nada dizer, sem discurso à volta da cozinha. Estes homens fazem cursos de alta cozinha. No livro, há uma mulher que revela que há dias especiais em que o marido se fecha na cozinha, a fazer a sua especialidade e os amigos o aplaudem, e é ela que prepara tudo o resto. Elas continuam com a cozinha de todos os dias, a do "que é que querem comer hoje?".

Mas não é suposto haver cada vez mais partilha de tarefas domésticas?

Os números franceses não são diferentes dos europeus. Só dez por cento dos homens cozinha no dia-a-dia, e mesmo assim é a actividade doméstica que mais fazem, tudo o resto é menos de dez por cento. Em todas as gerações, não estamos a caminhar para a igualdade, há até um pequeno retrocesso. Quando se olha para os números, fica-se surpreso, vê-se que na partilha das tarefas domésticas tudo avança pouco e lentamente. Estamos muito, muito longe, da igualdade.

Por que é que diz isso?

É muito complicado, não é só uma decisão mental, cada um tem a sua maneira de fazer as coisas e as mulheres acham sempre que há uma maneira melhor de fazer as coisas. Para a mulher, tudo o que o homem faz na casa faz mal. Isto não é biológico, não é consciente, são automatismos gestuais que evoluem muito devagar. Tem-se a ideia na cabeça de que igualdade é boa, mas os homens vão lavar a roupa e não escolhem o programa de lavagem que elas vêem como correcto, misturam tudo, como um jovem que eu entrevistei e que lavava as sapatilhas com as camisas. Uma mulher que vê isso fica escandalizada. São esquemas interiores que se reproduzem de forma não consciente, de geração em geração. E uma coisa é olharmos para o tempo dedicado aos trabalhos manuais, se olharmos para quem tem os problemas na cabeça, então a desigualdade ainda é maior. É a mulher que continua a ter a família na cabeça.

E como é que se muda?

No início dos anos de 1970 e 1980, houve uma mobilização geral da sociedade, em que se dizia que era preciso esforços para alcançar a igualdade. Hoje, temos a impressão que já lá chegámos e não há mobilização. Pede-se uma lei para igualizar salários, etc., mas é no interior do casal que estão os bloqueios mais importantes. É muito político o funcionamento do casal. Não se pode criar uma lei para obrigar o homem a lavar a louça. É preciso uma tomada de consciência, é importante dizer que não há igualdade para continuar a avançar. Não é fazer guerra, não é uma guerra entre sexos, é uma guerra do homem contra ele mesmo, da mulher contra ela mesma.

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